Pedro Guilherme Müller Kurban[1]
RACISMO E INJÚRIA RACIAL HISTORICAMENTE
Historicamente, os tipos penais de injúria racial e os de racismo foram tratados separadamente pelo Ordenamento Jurídico, cada qual com previsão legislativa diversa, haja vista que a teleologia do primeiro é punir expressão criminosa da honra na esfera individual (bem jurídico individual), enquanto que a do segundo visa à punição por lesão à coletividade indeterminada ( bem jurídico coletivo); assim sendo, por uma questão de razoabilidade, os delitos de racismo foram constitucionalmente estabelecidos como imprescritíveis, o que não ocorria com a injúria.
LEGISLAÇÃO: DISCRIMINAÇÃO RACIAL E INJÚRIA RACIAL
Para efeitos de distinção normativa, enquanto corolário do mandato de criminalização estabelecido pelo inciso XLII do Artigo 5º da Constituição Federal, o delito de racismo foi positivado em suas diversas condutas pela Lei 7.716/89. Giza-se que o mesmo dispositivo constitucional citado dotou o racismo de imprescritibilidade.
A prática, induzimento ou incitação de discriminação ou preconceito foi introduzida pela Lei 9.459 de 1997, que constituiu o atual Artigo 20 da Lei 7.716/89[2]; aliás, originalmente a Lei do Racismo não tinha a redação atual do Artigo 20[3]. Apenas para fins elucidativos, cabe destacar que a mesma Lei 9.459/97 distintamente alterou o Código Penal ao incluir o § 3º no Artigo 140 enquanto forma qualificada de injúria[4].
Diante disso, percebe-se, para além da diferenciação teleológica e conceitual dos delitos, a sua individuação normativa porquanto derivados de dispositivos diversos, ainda que provenientes da mesma lei.
O STF E A IMPRESCRITIBILIDADE DO RACISMO E DA INJÚRIA RACIAL
Entretanto, recentemente, o STF equiparou os tipos penais estendendo a imprescritibilidade constitucional do crime de racismo também ao delito de injúria racial, sob a exegese de que a injúria decorre necessariamente do racismo, compreendendo, pois, uma das expressões racistas lato sensu; por isso imprescritível. Ora, como assinalado, o escopo dos crimes é diverso, e, em vista disso, o constituinte entendeu pela imprescritibilidade do delito de racismo por atingir uma coletividade, objetivando constranger o ressurgimento de ideologias nefastas; a injúria, malgrado mereça a reprimenda devida, é e continua sendo agressão individual.
RACISMO COLETIVO; INJÚRIA INDIVIDUAL
Segundo a Suprema Corte, a ofensa individual inserta no tipo de injúria só ocorre por uma percepção coletiva própria e inseparável do racismo, imiscuindo o individual no coletivo. Frisa-se, de antemão, a aplicação desse claudicante raciocínio em qualquer tipo de injúria, não só de cunho racial, mas também religiosa, sexual ou até mesmo relativa à aparência.
Evidentemente, um insulto individual apreende elementos coletivos da sociedade para assacar contra o ofendido, mesmo porque um insulto dissociado de preconceitos ou de menoscabos consagrados comunitariamente deixaria ipso facto de ser um insulto, passando a ser uma excentricidade inócua, incompreensível ao pretenso lesado.
Deveras, vituperar um sujeito por sua aparência física baseia-se em conceitos visuais e preferências sociais, da mesma forma que depreciar um indivíduo por sua fé decorre da percepção pública desairosa acerca da religião respectiva – apreensível coletivamente portanto. Paralelamente, há um esvaziamento conceitual da injúria, e uma expansão do seu potencial normativo penalizador.
IMPRESCRITIBILIDADE: NOVA JURISPRUDÊNCIA
Veja-se que o silogismo criado pelo STF é de que injúria racial é uma forma de discriminação racial; sendo assim, também é racismo – a injúria racial passa a ser uma espécie do gênero racismo. Trata-se de alargar o conceito de racismo social desenvolvido em julgados de repercussão pretéritos.
Para o Ministro Fachin, relator do Habeas Corpus que gerou a novel jurisprudência, a distinção entre a afetação singular e a coletiva é “impossível (sic), sendo meras considerações formalistas desprovidas de substância”[5]; ou seja, a concepção imperante é de que o direito é maleável ao alvitre dos lumiares do poder moderador do século XXI[6], outrora mais humildemente tido como editor do país[7]. Com efeito, é um voto tipicamente militante este proferido pelo Ministro Fachin.
ANALOGIA IN MALAM PARTEM
Além disso, a equiparação operada pela Suprema Corte pode ser entendida como verdadeira analogia criminal; nesse caso, analogia in malam partem – em prejuízo ao acusado, o que é vedado pela Constituição sob pena de violação ao princípio da estrita legalidade, ou, ao menos, deveria ser vedado, o que vem sendo rotineiramente obliterado pelo STF.
ATIVISMO JUDICIAL E O PL 4.373/2020
Veja-se que esse novo episódio de ativismo do Judiciário impulsionou o andamento do Projeto de Lei nº 4.373/2020[8] aprovado pelo Senado no sentido de equiparar os dois crimes, tipificando como crime de racismo a injúria racial. Atualmente, o PL se encontra na Câmara dos Deputados para apreciação. Cria-se, assim, uma exótica convalidação a posteriori do Legislativo da usurpação de competência pelo Judiciário.
ILUSÃO DE LEI
De todo modo, essas condutas legislativas e judiciais reproduzem a insistência vã na magia da lei como panaceia das chagas sociais, robustecendo o arcabouço legiferante penal, por vias canhestras, diga-se de passagem, reputando que assim novos valores serão sedimentados, quiçá à força, descredibilizando a persuasão racional ou educativo-civilizacional. Recrudesce-se, ademais, o já vigoroso aparato persecutório-criminal. Ironicamente, a lógica torpe emana da Corte que se auto intitula racionalista e iluminista[9], a romper o barbarismo atávico do povo inculto, criando, contudo, o Direito penal na marra.
[1] Advogado Criminalista. Especialista em Ciências Penais.
[2] Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)
[4] § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem: Pena: reclusão de um a três anos e multa.”
[5] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/enquete-stf-e-o-poder-moderador-no-brasil-toffoli/.
[7] https://www.conjur.com.br/2020-jul-28/dias-toffoli-stf-nao-abandonar-combate-fake-news.
[8] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/144385.
[9] https://www.conjur.com.br/2018-fev-23/artigo-barroso-defende-papel-iluminista-stf