OS ERROS JUDICIÁRIOS NO JÚRI DA BOATE KISS

boate kiss

ativismo judicial punitivo, mais uma vez, atingindo a mais alta instância. Acima de tudo, houve o abandono explícito de conceitos legais, com a evidente desconsideração das diferenças que envolvem as definições de dolo e culpa.

código penal

A tese de que os réus agiram com indiferença frente ao resultado foi tão incompreensível, que nem a opinião popular, leiga e, em geral, punitivista, conseguiu comprar. Em conversas informais ou em comentários nas redes sociais, patente o choque e a inconformidade com o crime e as penas impostas aos quatro réus. E o motivo para isso é bastante simples: como conceber que os acusados, dentro da boate, com seus parentes e amigos, assumiram o risco de matar a todos? Como afastar a inafastável aceitação do resultado de um tipo cujo elemento principal é a vontade?

O DOLO EVENTUAL E A ACEITAÇÃO DO RESULTADO NO CASO BOATE KISS

Em termos leigos, é difícil de entender. Em termos técnicos, ainda mais. Conforme consabido, dolo é vontade, é ação destinada a um fim. Por razões que não cabem aprofundar, o Código Penal equiparou o dolo direto ao dolo eventual, determinando, em seu artigo 18, que o crime é doloso quando “o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Essa assunção do risco vem, historicamente (e logicamente), intimamente ligada à noção de aceitação do resultado, até porque sua mera previsão é requisito de crime culposo, que dispensa a demonstração de qualquer forma de vontade ou anuência com a realização da consequência danosa. Ou seja, atribuindo-se dolo eventual ao fato, é imprescindível que se demonstre que os réus, para além de prever o resultado, o aceitaram, de modo a atribuir um elemento volitivo à conduta.

O DOLO EVENTUAL E A CULPA CONSCIENTE 

E não poderia ser diferente, pois o dolo é indissociável da vontade, ainda que indireta, que diverge frontalmente da alegação de que os réus “contavam com a sorte de que nada iria acontecer”. Quem conta com a sorte espera que não aconteça, mesmo que por vontade divina; e quem espera que não aconteça, pelo motivo que for, não age com dolo, mas com culpa, como assevera o mais destacado jurista criminal do Brasil, Nelson Hungria, ao diferenciar o dolo eventual de culpa consciente:

dúvida do juri

Em suma, pode dizer-se que, no caso do dolo eventual, foi por egoísmo que o inculpado se decidiu a agir; custasse o que custasse. Ao contrário, no caso de culpa consciente, é por leviandade, antes que por egoísmo, que o inculpado age, ainda que tivesse tipo consciência do resultado maléfico poderia acarretar. Neste caso, com efeito, o valor negativo do resultado possível era, para o agente, mais forte que o valor positivo que atribuía à prática da ação. Se estivesse persuadido de que o resultado sobreviria realmente, teria, sem dúvida, desistido de agir. Não estava, porém, persuadido disso. Calculou mal. Confiou que o resultado não se produziria, de modo que a eventualidade, inicialmente prevista, não pôde influir plenamente no seu espírito. Em conclusão: não agiu por egoísmo, mas por leviandade; não refletiu suficientemente[1].

O conceito é bastante lógico e dificilmente ultrapassado, já que o afastamento de alguma forma de anuência com o resultado jamais pode autorizar o crime doloso. Dolo é, em essência, vontade; e não querer (mesmo contando com a sorte) é a própria representação da ausência de vontade. E, por mais difícil que seja essa diferenciação, em termos probatórios, vale lembrar que as palavras contavam com a sorte foram usadas por ninguém menos que a ilustre Promotora de Justiça.


[1] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, Volume 1, Tomo 2, 2 ed. Revista Forense, 1953, pg. 112.

OS ARGUMENTOS ACUSATÓRIOS

Voltando às questões fáticas, quem se coloca no mesmo risco que as demais vítimas dificilmente aceita o resultado; quem coloca a esposa grávida, o irmão, ou os amigos, muito menos. Em um caso em que o risco pessoal aos agentes é tão elevado, a aceitação do resultado deveria vir ainda melhor demonstrada do que em circunstâncias normais, o que não foi feito. Pelo contrário, abandonou-se a teoria da aceitação do resultado com base em argumentos puramente utilitaristas, pregando-se a previsão do resultado como único elemento necessário à demonstração do dolo na conduta.

boate kiss

A tônica da acusação foi um claro apelo ao emocional dos jurados, a nítida intenção de os chocar e coagir a condenar os réus às penas mais elevadas possíveis, sob pena de insuficiente reprovação do fato e, consequentemente, que este não seja coibido e volte a acontecer, em uma espécie de suplício moderno travestido de prevenção geral.

Em diversas oportunidades, afirmou-se que a condenação por homicídio doloso era a única forma de prevenir que fatos como esse voltassem a ocorrer, sem que em qualquer momento se fizesse referências a provas concretas que demonstrassem a caracterização dos elementos constitutivos de um crime doloso, abandonando-se o que poderia haver de jurídico na argumentação.

Bradou-se, diversas vezes, que a sociedade não aceita este tipo de resultado (como se a condenação por crime culposo representasse a anuência com a sua ocorrência ); mostrou-se, inúmeras vezes, vídeos e áudios transparecendo o desespero dos presentes, fotos das vítimas, apelos ao sentimental, cálculos de pena e de progressão de regime, sem que se voltasse para o direito, com a consequente análise das disposições legais de nosso ordenamento jurídico.

A CONCLUSÃO DO JULGAMENTO

Viu-se um espetáculo punitivo sem conteúdo técnico, encerrado com penas elevadíssimas e um fio de esperança no direito com o deferimento da medida liminar em Habeas Corpus, logo destroçada pela aberração jurídica criada pelo Supremo Tribunal Federal que, com um infundado salto de instâncias e violação a princípios básicos do direito, determinou a imediata prisão de indivíduos que não demonstraram qualquer ímpeto de fuga, que permaneceram soltos o processo inteiro e, ainda, baseado em uma comoção popular inexistente. São tempos difíceis para o Direito Penal, e o júri da Boate Kiss, infelizmente, representa muito mais do que apenas um grande erro judiciário isolado.  

Gabriela Ruschel de Lia Pires,

Advogada.

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