A BANALIZAÇÃO DO ERRO MÉDICO NO DIREITO PENAL

erro médico

É cada vez mais observável, na sociedade como um todo, a necessidade constante de busca por responsáveis por quaisquer fatos ocorridos no cotidiano, como por exemplo, o erro médico. No que tange aos fatores de maior impacto, essa banalização da responsabilidade se acentua, o que possui nítidos reflexos no âmbito do direito e, especialmente, do direito penal.

Fazendo referência à obra do economista FALÁCIAS NARRATIVAS NO DIREITO PENAL MÉDICO

Nessa toada, no plano jurídico, as falácias narrativas encontram especial relevo no âmbito do direito penal médico, sendo cada vez mais frequente a banalização do erro médico e a constante busca pelos responsáveis por fatos que, no mais das vezes, são inexplicáveis e inevitáveis. Assim, pacientes submetidos a cirurgias malsucedidas, abortos espontâneos, crianças vindo a óbito de forma súbita, não mais entram no plano da tragédia mas, sim, no do direito penal, responsabilizando-se aqueles que, no imaginário popular, deveriam operar milagres diários: os médicos.

erro médico

Assim, seguindo a lógica da falácia narrativa, Daniel Kahneman afirma que “boas histórias fornecem um relato simples e coerente acerca das ações e intenções das pessoas” (pg. 249). Passando-a para o erro médico e a responsabilização dos profissionais da saúde, é mais simples e coerente aceitar que o médico errou do que que alguém pode sofrer uma morte súbita e inesperada sem culpa de um terceiro. A ninguém é confortável pensar que, sem qualquer aviso, pode padecer de um mal incurável e inexplicável. E, justamente por isso, surge uma comum falácia narrativa: o erro médico.

A partir daí, ocorrem banalizações desde a realização do boletim de ocorrência até a denúncia, e até mesmo da condenação. Médicos vêm sendo condenados pelos mais variados delitos, pelas mais variadas fundamentações, por fatos sem explicação, mas com uma origem comum: a falácia narrativa. E ela é justificável, até certo ponto, no que se refere à sociedade em geral. Não se pode considerar incompreensível que uma mãe não aceite a morte do filho, ou o filho a morte da mãe. No entanto, quando se entra no plano do direito, os seus aplicadores não deveriam estar sujeitos a tais falácias.

Justamente por isso, o direito penal médico deveria ser tratado com especial atenção, buscando-se evitar essa banalização do erro médico. E não equivale a dizer que médicos não erram e não deveriam responder quando o fazem. O problemático é quando vira banal, usual e mal fundamentado. Não aceitar o inexplicável é o problema. Novamente, recorre-se às falácias narrativas e a seu autor: “você não consegue deixar de lidar com a informação limitada de que dispõe como se fosse tudo que há pra saber. Você constrói a melhor história possível a partir da informação disponibilizada a você, e se for uma boa história, você acredita nela” (pg. 251).

Ou seja, frente a um fato inexplicável, é mais fácil analisar o resultado de forma limitada, culpando o único agente capaz de, em uma narrativa coerente, ser culpado, do que aceitar que não se tem acesso a todas as informações disponíveis e, consequentemente, não é possível narrar o resultado de forma causal.

A banalização do erro médico traz consigo a limitação da atuação médica, pois gera um desproporcional número de condenações com fundamento em pequenas condutas que deveriam ter sido tomadas, diagnósticos que deveriam ter sido feitos, tratamentos que deveriam ter sido prescritos, banalizando-se, também, os crimes omissivos. Entretanto, no direito trabalhamos a posteriori, já com conhecimento do resultado, e os operadores parecem olvidar que os médicos não trabalham com esta mesma noção.

O VIÉS RETROSPECTIVO E A BANALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL MÉDICO

Nesse plano, encontramos mais uma explicação na teoria do vencedor do prêmio Nobel: o viés retrospectivo, que faz com que sejamos “propensos a culpar os tomadores de decisão por boas decisões que funcionaram mal e lhes dar pouco crédito por medidas bem-sucedidas que parecem óbvias apenas após o ocorrido” (pg. 255). Ou seja: ao olhar para os fatos de forma retrospectiva, tendemos a buscar coerência na narrativa partindo-se dos seus desdobramentos, de modo que maus resultados só podem ter surgido de más condutas, e bons resultados de boas condutas. É mais fácil acreditar nessa narrativa.

Por isso, acaba-se por condenar criminalmente profissionais pelo resultado, e não pela má atuação, buscando formas de punir alguém por um desdobramento que à época não era possível prever. É evidentemente muito fácil saber exatamente qual tratamento deveria ter sido prescrito após se ter certeza do diagnóstico; ou se saber como diagnosticar após ter esta mesma certeza. É igualmente fácil, consequentemente, dizer que o médico também deveria ter este conhecimento e, com base nisso, finalmente encontrar um responsável pela fatalidade. No campo prático, entretanto, essa certeza inexiste; a medicina não é uma ciência exata.

erro médico

Diante de todo o exposto, é necessário aceitar a limitação do direito penal, compreendendo as limitações de nosso próprio pensamento e da forma como buscamos criar sentido em coisas que não temos como compreender. Da forma como vemos hoje, a atuação dos médicos beira o insustentável, podendo vir a ser condenados criminalmente por qualquer resultado negativo – e é consabido que a superveniência desses resultados é um risco inerente da profissão.

Necessário, para isso, atermo-nos aos limites de nosso meio e barrar a crescente banalização da condenação criminal dos médicos por fatos alheios à sua capacidade de interferência, o que nada mais é do que respeitar os princípios gerais de direito e as teorias de causalidade de forma estrita.

Gabriela de Lia Pires,

Advogada Criminalista.

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